Para a minha avó Petita (Maria da Conceição Coelho Toledo).
No Brasil, a oligarquia, que sempre esteve por perto do Imperador e que passou a comandar o governo nacional com o golpe militar de 1889, percebeu que o centenário da Independência trazia consigo novas forças políticas interessadas em transformar o País numa verdadeira República. Não vinham da sociedade civil, mas da ralé das Forças Armadas, que percebiam que as injustiças que sofriam na caserna eram o retrato da própria sociedade brasileira, onde uma minúscula elite monopolizava as oportunidades de participação efetiva.
Naqueles primeiros anos da década de 1920, os tenentes se viram na figura de representantes do descontentamento popular com os rumos que a República havia tomado. O País estava prestes a comemorar um século de independência, mas praticamente nada mudara desde que D. João VI voltara a Portugal em 1821. A única mudança perceptível era que, agora, eram os britânicos que ditavam as regras para um governo frágil e subserviente.
Como defensores da Pátria, cabia aos militares romper definitivamente com os laços coloniais e colocar o Brasil no grupo dos Estado verdadeiramente soberanos. Para tanto, urgia a substituição imediata da elite dirigente nacional, mesmo que para isso fosse necessário o uso da força.
O País vivia uma frágil democracia, onde a fraude eleitoral prevalecia em favor dos interesses particulares dos oligarcas reunidos no Partido Republicano. Não se confiava no voto como instrumento de transformação política eficiente. Qualquer desejo de mudança no curso das decisões governamentais deveria necessariamente passar por um movimento revolucionário armado.
Com esse espírito, a sociedade brasileira assistiu, apenas na terceira década do século XX, a três importantes episódios revolucionários por parte dos tenentes cujo desfecho não implicou na tomada do poder. O primeiro se deu no Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1922, na chamada Revolta do Forte de Copacabana. Dois anos depois, também em 5 de julho, a cidade de São Paulo foi palco de outra tentativa revolucionária abortada pelas forças reacionárias. Em seguida à segunda derrota, os tenentes resolveram adotar uma estratégia diferente de enfrentamento ao poder constituído.
As derrotas de 1922 e 1924 haviam mostrado aos tenentes que, no estágio em que se encontrava, a República Velha nunca seria derrubada num embate corpo a corpo. Uma nova estratégia era necessária. O capitão Luis Carlos Prestes saiu do Rio Grande do Sul para mostrar aos companheiros que o movimento revolucionário só tomaria o Catete após atrair as massas e desgastar o governo federal. Para tanto, eles deveriam esquecer por um momento o Rio de Janeiro e seguir para o norte em busca de apoio popular. Inicia-se assim a Coluna Prestes, que percorrerá por três anos milhares de quilômetros do território brasileiro em combate sem ser jamais vencida pelo governo.
Entretanto, diferentemente do que previra Prestes em Foz do Iguaçu, as dificuldades encontradas pela Coluna no caminho do Paraná a Minas Gerais, passando pelas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, superaram em muito o apoio popular com o qual os tenentes contavam para tomar o poder. Concluiu-se assim que não havia chegado ainda a hora da Revolução. Em 1927, a Coluna Prestes foi então desarticulada por seus líderes, após se exilarem na Bolívia. Se até 1924 os tenentes aprenderam ser impossível uma luta aberta contra o Estado oligárquico, em 1927 eles constataram que aqueles que pouco têm a perder, são os que mais têm medo da mudança.
No último ano de seu mandato, o presidente da República Washington Luis, anunciou que apoiaria para sua sucessão o nome do também paulista Julio Prestes, o que significava a quebra do acordo fundamental da República Velha, que previa o comando alternado do poder federal por paulistas e mineiros. Washington Luis havia sucedido o mineiro Artur Bernardes (quem enfrentou todos os três impulsos revolucionários dos tenentes) e, agora, deveria ceder seu lugar, a Antônio Carlos de Andrada, que encerrava seu mandato como presidente de Minas Gerais. Apesar de todas as ameaças, Washington Luis não cedeu às pressões e confirmou oficialmente que seu candidato às eleições presidenciais de 1930 seria o então presidente de São Paulo.
Quebrado o pacto de reciprocidade, conhecido como pacto do café-com-leite, a oligarquia mineira não teve outra alternativa que romper definitivamente com os paulista para apoiar uma candidatura alternativa. O Partido Republicano Rio-grandense (PRR) conseguiu impor-se e garantiu que a chapa fosse encabeçada por um gaúcho. Como mandava a tradição política da época, o candidato seria o atual presidente estadual. Surge assim o nome de Getulio Vargas, que governava o Rio Grande do Sul desde 1928. Para vice, escolheu-se o nome de um político paraibano, João Pessoa.
Com o apoio do mineiros, a candidatura de Getulio ganhou força, mas todos sabiam que nada era suficiente para bater o candidato governista, independente de seu nome ou do apoio. A vitória de Julio Prestes era questão de tempo. Todos sabiam, inclusive os tenentes, que, como nas duas eleições presidenciais anteriores, passaram a confabular um novo movimento capaz de impedir a eleição de um oligarca para a presidência da República.
O sabido e esperado inevitavelmente aconteceu. Nas eleições presidenciais de 1o de março de 1930, Julio Prestes é eleito com mais de um milhão de votos. Getulio Vargas recebeu cerca de 700 mil votos. Como era de se esperar, a oposição alegou a existência de fraude eleitoral. Mas tal afirmação não passava de redundância. As denúncias não foram apreciadas, nenhuma investigação foi feita e a eleição do candidato paulista foi proclamada. O que importava é que Julio Prestes estava eleito e governaria o Brasil pelos quatro anos seguintes.
Finda a tentativa de conquista do poder pelo voto, encerrada estava a única chance de obtenção do poder aceitável pelo grupo político derrotado, formado por oligarcas mineiros, gaúchos e nordestinos. Restava agora esperar o início do novo governo e a reorganização das forças políticas tradicionais. Afinal de contas, eram todos oligarcas liberais, sempre próximos do governo. Claro que a mágoa era enorme, especialmente por parte dos mineiro que tiveram que engolir o fim do pacto do café-com-leite e a eleição do paulista. Houve quem levantasse a hipótese de apoiar uma revolução, mas o grupo era conservador demais para aceitar uma proposição tão radical.
Precisou, entretanto, que João Pessoa fosse assassinado no Recife, em 26 de julho de 1930, por causa de uma briga particular, para que a tentação revolucionária se tornasse irresistível. Os ânimos estava exaltados. A comoção no País era geral. Finda a tentativa de conquista do poder pelo voto, iniciava-se uma nova etapa de tomada do poder pelos derrotados nas urnas e… nas armas. Eis que voltam os tenentes a enxergar a possibilidade de realização de seu programa político.
Com a oligarquia paulista no comando do governo federal no Rio de Janeiro e do governo estadual em São Paulo, o grupo oligárquico dissidente resolveu se aproximar dos tenentes, também derrotados pelo poder constituído. Estes já haviam decidido que, uma vez tomado o poder, caberia a um civil o governo. Logo, a maturidade lhes mostrou que havia a necessidade de o movimento revolucionário possuir um braço político que levasse o Estado às reformas estruturais necessárias. Estava formada a partir de então a aliança político-militar ao enfrentamento do governo federal.
O assassinato de João Pessoa foi a justificativa que faltava para a precipitação do quarto ataque tenentista em oito anos contra a República Velha. Dessa vez, os tenentes estavam acompanhados de políticos oligárquicos e desacompanhados de Luis Carlos Prestes, que abandonara o projeto, quando o marxismo lhe mostrou que uma associação com a oligarquia dissidente seria uma contradição insuportável.
Sem Luis Carlos Prestes, mas com Getulio Vargas, Borges de Medeiros, Antônio Carlos de Andrada e… Artur Bernardes!, os tenentes começaram em 3 de outubro de 1930 a Revolução que sepultaria a República Velha. Para vencer os paulistas em âmbito estadual e federal, só uma aliança tão heterogênea quanto essa seria capaz de ter algum sucesso.
Não havia ilusões quanto à precariedade da aliança político-militar que possibilitou a Revolução de 30. Cada uma das partes do acordo contava que, uma vez derrubados os paulistas, seria ela a ditar as regras do novo governo. Ainda mais no que dizia respeito à oligarquia mineira, representada por Artur Bernardes, que se acostumara com a política do café-com-leite das décadas anteriores. Os mineiros se consideravam detentores do legítimo direito de fazer o sucessor de Washington Luis, nem que para isso fosse necessário tolerar um gaúcho no Catete.
Feita a Revolução, os paulistas e seus apoiadores veriam que o golpe era mais profundo do que imaginavam. Não só o poder federal foi tomado à bala, como as primeiras medidas de Getulio significaram uma forte centralização política, com o consequente enfraquecimento do papel das articulações estaduais.
A Revolução tentou tomar para si as rédeas do poder estadual através da intervenção federal nos estados, salvo para aquele ao qual ele devia sucesso da empreitada: Minas Gerais. Por isso, o presidente deste estado, Olegário Maciel, foi o único a ser mantido no cargo. Nos demais, o governo federal nomeou o interventor.
Getulio consolidava assim a lealdade de Minas Gerais, que tão importante seria na sequência das transformações que pretendia realizar no País. Ele sabia que os paulistas, derrotados no âmbito federal, não aceitariam facilmente qualquer tentativa de modificação política no âmbito estadual. Haveria inevitavelmente muitas dificuldades pela frente e contar com o apoio de Minas era fundamental.
Os primeiros desdobramento da Revolução mostraram que Getulio, dentre os diferentes grupos que haviam composto a base da Revolução, optara por ficar com a juventude tenentista em detrimento da velha-guarda oligárquica. Olegário Maciel só não foi substituído por um interventor, pois seria impossível enfrentar tantos descontentamentos de uma vez só. Continuar enfrentando São Paulo não era pouco e Minas precisava continuar do seu lado.
Pendendo para o lado dos tenentes, Getulio Vargas faz suas as demandas tenentistas. O principal objetivo é então romper absolutamente com a política oligárquica de tipo colonialista. Pretendia-se recriar o Brasil sob bases populares e nacionais, em que a burguesia local pudesse se desenvolver sem a asfixia provocada pelo capital estrangeiro e onde os direitos fundamentais fossem fruídos por todos, sem exceção. O primeiro passo era asfixiar o Partido Republicano, representante dos bancos britânicos no Brasil.
Diante desse quadro, os membros do partido oligárquico se viram jogados no meio de uma nova guerra. Dessa vez, tratava-se de uma luta pela sobrevivência. A surpresa foi ainda maior entre os gaúchos e mineiros, que contavam com a instituição de uma política do “chimarrão-com-leite”, que lhes propiciasse uma participação direta nos assuntos governamentais dos estados e da federação. Borges de Medeiros, do lado rio-grandense, e Artur Bernardes, do lado mineiro, personificavam o sentimento de traição da Revolução a seus interesses e declaravam oposição aberta ao governo outubrista de Getulio Vargas.
Neste ponto, deixemos de lado o rumo seguido por Borges de Medeiros nos pampas e passemos a acompanhar a trilha do montanhês Artur Bernardes, ex-presidente da República.
Decepcionado com o que se tornara a Revolução “liberal” de 30, Bernardes assume a defesa da oligarquia mineira. Via com ódio Getulio no Catete e com rancor Olegário Maciel no Palácio da Liberdade, quem, a seus olhos, havia se vendido ao novo governo. Como consequência, ele voltava às pazes com seus parceiros paulistas, quem abandonara por dois anos, entre 1929 e 1931. Seu inimigo continuava no poder. Não se tratava mais do PRP, mas da Legião de Outubro. Restava-lhe unicamente se reaproximar dos derrotados a fim de tramar a contra-revolução.
A oligarquia paulista, humilhada pela derrota militar e política (especialmente com a nomeação de João Alberto como interventor de São Paulo), viu com bons olhos a reaproximação do tradicional correligionário. Nos meses seguintes, Bernardes procurou de todas as formas convencer Olegário Maciel a romper com Getulio e se aliar aos paulistas para restaurar a República Velha. Tudo em vão.
Quando em 1932, a contra-revolução foi lançada em 9 de julho pela oligarquia de São Paulo, Bernardes ainda tentou convencer os políticos mineiros da necessidade de lutar contra o governo federal ao lado dos paulistas. Aqui se mostrou importantíssima a decisão do governo federal de consolidar o apoio de Minas Gerais com a decisão de não decretar a intervenção federal no estado. O governo estadual, bastante envolvido com a política do Catete, vetou todas os iniciativas conspiratórias de Bernardes.
Diante da negativa, tinha ele duas alternativas: ou resignava-se apoiando Getulio, como havia decidido Minas Gerais; ou rebelava-se contra o governo de seu estado para se aliar à contra-revolução paulista. Se havia uma pequena chance de retorno ao poder pelo PRM, ela se encontrava do lado de São Paulo, que lutava em nome do Partido Republicano. Assim, declarou Bernardes, que havia se aderido à causa paulista, pois, segundo ele, para São Paulo se transferira a “alma cívica” do Brasil.
Sem espaço em Belo Horizonte, seu papel foi a organização de uma frente contra-revolucionária na Zona da Mata mineira, cuja sede seria sua cidade natal, Viçosa. Esta região era muito conhecida por seu caráter bernardista e, se havia algum lugar do estado onde a população poderia se engajar ao lado dos paulistas, esse lugar seria inevitavelmente a região de Viçosa.
Depois de um início promissor, em que o governo federal foi pego de surpresa pelo ataque de São Paulo, o movimento contra-revolucionário de 1932 caracterizou-se por ser tão somente um exercício de defesa contra as ofensivas inimigas vindas do Rio de Janeiro, de Minas Gerais (norte) e do Paraná (sul). Tal característica meramente defensiva também se verificou na frente contra-revolucionária de Bernardes. A maior parte da Força Pública de Minas Gerais estava estacionada no sul do estado em combates contra a Força Pública de São Paulo. Porém, o governo estadual não podia deixar a resistência bernardista de fora e decidiu enviar a Ponte Nova alguns batalhões, que deveriam impedir uma eventual tentativa tomada da capital mineira.
Enquanto isso, outros batalhões da polícia mineira atacavam Viçosa pelo sul, vindos de Muriaé. Artur Bernardes havia se tornado um inimigo de Minas Gerais, que deveria ser combatido firmemente.
Com o desgaste inevitável das resistências paulista e bernardista, a vitória dos outubristas tornava-se cada dia mais inevitável. O fim era uma questão de tempo. Com Viçosa sitiada e sob fogo cruzado, Artur Bernardes, temendo por sua vida, resolve deixar a cidade. Qual caminho seguir? A via norte estava bloqueada pela Força Pública em Ponte Nova. Pelo sul vinha o ataque dos policiais de Muriaé. No oeste ficavam cidades importantes como Ouro Preto e Belo Horizonte. A melhor alternativa era enfurnar-se na Mantiqueira e se esconder em Araponga, distrito de Viçosa, localizada a 50Km de distância no sentido leste.
Com a tomada de Viçosa, descobriu-se que Artur Bernardes havia fugido para Araponga, onde, segundo os boatos, a última resistência bernardista estaria formada com o que havia de mais avançado em tecnologia de guerra. De fato, naquele distrito de Viçosa, fazia meses que a população local vinha sendo requisitada para a formação de batalhões contra-revolucionários. Era verdade que houve compra de armamento, fardas, construção de trincheiras, posicionamento de sentinelas etc. Preparava-se para a guerra contra os getulistas.
Ao saber da fuga de Bernardes, Minas Gerais passa a organizar sua captura em Araponga. Para tanto, resolveu-se mobilizar parte da Força Pública estacionada em Ponte Nova em direção de Abre Campo, cidade mais bem localizada, de onde partiria o ataque definitivo ao último reduto contra-revolucionário em Minas.
Embora Abre Campo e Viçosa fizessem divisa uma com a outra, aquela cidade não aderira ao furor bernardista, mantendo-se do lado da Revolução. Era de fato conhecido o getulismo de Abre Campo, onde inclusive fora formada uma Legião de Outubro. Em virtude disso, Olegário Maciel entrou em contato com as lideranças locais para organizar o ataque a Araponga. Dessas trocas de informações, decidiu-se que haveria a colaboração de forças paramilitares das lideranças locais, fiéis à Revolução. Dentre essas, destacava-se o grupo de Pedro Victor de Oliveira, chefe político getulista de Pedra Bonita, distrito de Abre Campo.
Uma vez acertado que o ataque a Araponga seria feito por membros da Força Pública de Minas Gerais, que estavam em Ponte Nova, e pela força paramilitar de Pedro Victor, que estava em Pedra Bonita de Abre Campo, decidiu-se que sua reunião ocorreria no meio do caminho, onde seria então erguido um quartel. O ponto geográfico escolhido para o aquartelamento foi Itaporanga (hoje, Sericita), distrito de Abre Campo, a partir do qual um ataque surpresa deveria ser preparado. Para tanto, as lideranças políticas getulistas de Itaporanga de Abre Campo foram contactadas para fornecer seu apoio, dentre as quais se destacavam Luis Coelho Filho e Antonino Xavier de Toledo.
Naquele distrito, um quartel foi de fato montado, onde os policiais de Minas Gerais e os homens de Pedro Victor puderam se reunir em preparação para a captura de Artur Bernardes em Araponga. Pedro Victor ficou hospedado na casa de Luis e Belarmina Pinho Coelho naqueles dias.
Em 15 de setembro de 1932, partiam de Itaporanga homens de farda cáqui e lenço vermelho ao pescoço (símbolo da Revolução) com o único objetivo de acabar com o último foco contra-revolucionário no estado e capturar seu maior líder, o ex-presidente Artur Bernardes.
Nesta data aconteceu a Batalha de Araponga, incapaz de resistir mais que um dia. A última resistência bernardista não era mais do que a coragem de uma pequena comunidade.
Só que Bernardes não estava lá (mas isso é uma outra história).
Orgulhoso de poder contar, exatos 80 anos depois, um fato histórico nacional do qual participaram ativamente Luis e Antonino, meus bisavôs.
Os getulistas de Itaporanga (Sericita).
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